O ORVALHO E OS DIAS
Me mataria em março
se te assemelhasses às coisas perecíveis.
Hilda Hilst
em novo endereço: www.trajeslunares.wordpress.com
Dispo-me
como quem quer se dar. Desvelando-se,
expondo as faces, as dobras,
os caminhos.
Entregando o peito, a nuca,
o calcanhar. Como quem necessita
ser frágil no braço do outro. Desmaiado
num colo precioso. Dispo-me
para ser amado.
Mantendo um véu.
É asas abertas e fogo
descendo todo inefável.
A estas costas se posta.
E em seu abraço terrível
eu sou por inteiro enlaçado.
O queixo em meu ombro apóia,
lançando olhos sublimes
e incomum gravidade
por todos os meus arredores,
por todos os meus pobres lados.
Falar-te-ei de mistérios,
parábolas do já falado,
desde o início cantado,
“o sonho preanunciado”.
Teus olhos sejam para veres;
ouvidos, para escutares:
a mesma idéia é o que trago
vestido em trajes lunares.
O menino bate a pedra.
O que fazes, ó menino?
Bato a pedra, bato a pedra.
Pra que bates, ó menino?
Farei nela linda flor.
E por que tu tão transido?
Por que choras, meu menino?
Sei que tudo é perdido:
ela não terá odor.
Há duas irmãs mancas:
a que diz e a que é.
Uma clama vir a ser;
outra vive o não saber.
Uma quer a carne da outra,
que deseja o seu sabor.
Uma manca por destino.
Outra manca por fraqueza;
muitas vezes, por desleixo.
São duas irmãs, as mancas,
que dividem lar soturno:
nuvens passam adiante,
gritos ecoam no mundo.
Uma toma a mão da outra;
vem-lhe certa estranheza:
olha fundo em seus olhos,
vê-se neles com justeza.
Eles falam de horrores;
mas é desta a tristeza.
Ei-las: duas irmãs mancas:
se de uma jorra o sangue,
noutra vê-se a sua cor;
uma canta os lamentos,
outra sente a grande dor.
Vejo duas irmãs mancas:
uma é Frágil Gardênia.
Outra é Fingida Flor.
Existe um ponto extremo,
coeso: o vértice do cone.
Nele há o grito primevo,
que ecoa na figura.
Dele parte o que ressoa
e para ele vai toda a geometria.
Nas paredes do módulo grava-se seu eco,
circunvagante em toda sua extensão.
O cone é o todo
e nasceu do ponto
e para ele converge.
Sendo este, em verdade,
um de fora. Um que lança suas vistas
sobre o todo.
Não é vértice,
o quadro é rico.
E o homem não desenvolveu o verbo
para definir o que se lhe avista à frente.
reluzente o ponto.
E a figura nele reverdece,
reverbera o seu interior.
Há cômodos, divisões,
tamanha a dela grandeza.
Por trás dos muros, a sombra
é o que impera: espectros,
fantasmagoria.
Expande-se vocacionado o módulo,
como se respirando do sopro
que vem do ponto. (O vértice.
O outro. De fora, lançando as vistas
ao todo.)
Estende-se e retorna. Para depois se estender.
E provoca rachaduras. Umas múltiplas fissuras
nos muros erigidos.
O grito nas altas colunas
racha seus alicerces. Quedando-se elas ao chão.
Polvilham-se, fenecem.
Agora sim então reverbera real a figura:
completa entoante ela é toda bailado,
também lábios cordatos, gesta. Composição.
Flutua em meio ao nada
— única existente —
A Notável Construção.
Na noite invernal, rachou-se a estela.
E o que era pedra e cinza tornou-se carne
e sopro.
E o templo tem veias onde corre sangue,
e voz que profere verdades. Palavras.
Na grande noite invernal, rachou-se a estela.
E o orvalho tocou os campos
e as faces.
E a luz cobriu a todos
e revelou o ocultoso. E os aqueceu.
Clamores rotundos. Catedral erigida no peito —
uns feixes de carne eriçada, estrela de sete pontas no topo.
Ao alto, assoma uma oitava, ilustre, extremosa.
Fecunda, desce em seta, postando-se sobre o edifício.
Olhos ardentes e risos contidos compõem o conjunto,
com o fio que, em rútilo, sobe pela construção.
Tocando irisado a ponta que faltava, soberba
a comunhão.
Desde que me tocaste diáfano a face
E muito leve descortinaste teu ser
— desde então é inquietação meu viver:
Corro os vales batendo no peito; os lábios
Tremem, gritam: tocou-me. Ele me tocou,
E sua mão é lanças de fogo. Ele
É um esmagar-me contínuo. Tocou-me:
Ele me tocou. E clamo: toca mais. Não te dês
Por contente: toca-me. Oh, vem, toca-me!
— eu grito, vestes rasgadas, braços em riste,
Olhos vidrados: toca-me. Quero o teu peso,
Peso teu sobre e dentro de mim. Toca-me.
O solteiro d’alma desposada
tem a sua alvada casa
veridicamente bifronte, dupla
por vera riqueza na fronte
alva plantada, cortada
em tenro marfim. São duas
faces e uma, de intimidades
regadas: eu sou e te vejo
em mim. É uma e duas
(necessárias). Existe a grudada
nos altos, de vista formosa
emprenhada. E aquela que vê
os baixios, de si, em si,
comiserada, contente, nunca
esfaimada. (Pois vê o que aquela
vê). Que vendo uma,
vêem as duas. Uma
fincada nos cumes, outra
rondando as furnas — sempre
trocando sabores, sempre
se presenteando, sempre tão sempre
afins. Há muros
de incenso evolados; não-muros
de puro olor. Um rosto
olha para o outro, e então
é trocado um dom:
oh céus,
que uno delírio, oh céus, que gestos
de lírio, oh céus, que tão fino amor.
Morro de amores por meu Senhor.
E Tanto que peço: aniquila-me, Amado.
Joga sobre mim um raio de teu amor
e espalha minhas cinzas sobre os homens,
para que todos saibam como meu Senhor é bom.
É daqueles carinhosos,
que não negam um consolo à amada.
E se prometem dão sempre mais que o prometido.
É pródigo o meu Senhor.
Derrama sobre mim seu amor em torrentes,
abrindo seus longos braços, que me enovelam em seu peito.
Tão quente, ardentíssimo o peito de meu Amado;
que enquanto me abraça, sussurra
(aos meus ouvidos canções as mais belas).
E nem fecho os olhos para ouvi-las;
pois onde encontrar beleza maior que
Fixo-me em seus lábios,
escarlates como a ferida em meu coração quando se vai.
Escarlates como o sangue que derramaria para tê-lo de volta.
Mas não demora muito o meu Amado;
é cuidadoso, tão solícito o meu Senhor:
vem sempre com um ramalhete nas mãos.
Na última vez, trouxe-me lírios os mais puros,
cândidos como os dentes que quase não se viam quando beijava as pétalas.
“São para o meu amor” — diz o meu Amado.
E quase desfaleço
— não fosse estar a própria minha vida a enredar-me nos braços.
Eu, uma quase meretriz,
que em ausência de seu senhor procura-o por todos os lados.
Mas não o encontrando, satisfaz-se,
não se satisfazendo,
com o pouco que são todos os outros.
Mas já o disse a Ele. E o fiz nestes termos:
“Amor, por que te demoras nas viagens?
Não sabes então que sou fraca
e sem ti corro logo a beber do regato mais próximo?
Não te demores, Senhor!
Que ao menos sempre mandes lembranças tuas,
ó rio cristalino.”
“Vem, vem logo — é o que clamo nas noites.
Vem que tenho sede.
E fecho os olhos a te imaginar.
Mas nenhum pensamento te chega sequer aos pés.
Uns pés que clamo para que me apareçam à frente
e eu os possa banhar com minhas lágrimas e meus beijos.
E com os cabelos enxugar.”
Assim digo ao Amado.
Que sorri aquele seu sorriso.
Não demores, Amado.
Não sabes que sou como meretriz,
que na ausência do senhor corre
a buscar beber do primeiro regato?
Não demores. Tem misericórdia.
E confia em tua amada,
que se esforça em te preparar as melhores iguarias.
Apesar de nenhuma digna de ti.
Pois se delas a maior sou eu mesma?!
Mas iguarias.
Onde se deleita Aquele que as tornou iguarias.
Vem, Amado.
Prova do manjar que te preparo com teu próprio amor.
Amo-te, Senhor. E não te trairia.
Ó Amado, faze-me tão feliz...
Lembro-me de quando, mais moça,
bati à tua porta.
Eram uns trajes toscos os que eu usava.
Atendeu-me tua Mãe. Que logo me convidou a entrar.
“Que desejas?” — perguntou-me amável,
uma das mãos ajeitando os cabelos desta que hoje sempre os arruma.
Para ti, Senhor.
“Que desejas?”
“Teu Filho...” — sussurrei.
“Meu Filho?!” — disse tua Mãe, num leve espanto.
“Que desejas com meu Filho? Diz-me.
Ou não confias em mim?” — perguntou num recuo,
os braços assentados nos quadris. — “Diz-me.”
“Estou enamorada de teu Filho, Senhora — pus-me a dizer —,
e sem ele já não vivo.
É aportar o sol à minha janela
e já a escancaro de folha a folha,
postando-me no peitoril.
O vestido que então coloco, Senhora,
é o meu mais bonito:
um de seda, quase nácar.
E o pescoço, umas lindas pérolas são o que o adorna.
Sobre os cabelos derramo seivas as mais perfumadas.
Minhas mãos cheiram a alfazema.
E os olhos... os olhos são fitos
Que sempre me aparece como príncipe.
Tão garboso, Senhora...
Tem bons modos.
Tira o chapéu e seu cumprimento é o mais doce.
Mais doce até do que um rouxinol.
Não conheço rouxinóis, Senhora.
Mas o é.
Cumprimenta-me e segue o caminho.
Não deixando de olhar vez ou outra.
E diria mais: olha muito. Volta-me sempre o olhar.
Atencioso, educado teu Filho.
E tão forte! Benditos os seios que o amamentaram.
A boca que lhe ensinou tão finos modos.”
E teria dito mais,
não fosse teu Pai a chegar, sorrindo-me atencioso,
o chapéu na mão e o corpo dobrado numa mesura.
Foi-se um átimo;
e já era o meu corpo um se dobrar.
Vi teu Pai e achei que eram tão semelhantes...
Nele te reconheci. E não tive mais coragem.
Estremecida despedi-me e correndo voltei para casa.
Tua Mãe despediu-se e, olhando-me,
antes que eu tivesse saído, puxou-me um dos braços
e disse-me ao ouvido, enquanto me abraçava:
“Volte sempre;
e te ensinarei como conquistá-lo.”
Sorri largamente.
E como teria vergonha de voltar outra vez,
deixei cair o lenço
como pretexto para aparecer em tua casa no outro dia.
Sorris, Amado.
Mas de que sorris?
Não me sussurres, Senhor. Dá-me cócegas.
O quê?!! Já sabias de tudo, então?!
[Pulo para bater-lhe no peito. Mas me abraça e nos beijamos.
Faz-me tão feliz o meu Amado!...]
Não é rumor de correntes
o som que aqui se pressente;
são as sandálias puídas
nos pés da mulher-antiga.
Desce escada, sobe escada,
na porta a face espalmada.
Que queres, que ouves sozinha,
só tu e tua porfia?
Que queres tu murmurante,
sendo de ti adiante
apenas véu e cortina,
a um tempo tão dura e fina?
Segue na diária trilha,
só, a mulher-andarilha.
Quem vê, quem sabe da falta
que há no peito da nauta?
Nauta de veste andrajosa,
andeja. Flor tão formosa
decora a bela fazenda,
de laços, bicos e rendas.
A flor, no pano, é vária,
estampa e também alfaia,
lembrando que o pano roto
não fora um dia assim morto
como ela o é tão agora.
Essa, na casa onde mora,
passa as unhas na parede
tentando aplacar a sede
que lhe provoca a memória,
como se a sua história
fosse possível ser lida
ou, quem sabe, revivida
num mero passar de dedos,
revolvedor de segredos,
nessa leitura em braile
que contra um muro se esvai.
No bolso as mãos enfurnadas,
vaga a mulher-enjaulada,
no corredor, tão sombrio
que tem uns laivos de frio
correndo por trás dos quadros
— como se, tão desmaiados,
dos rostos fosse o desvelo,
nesse túnel quase gelo,
o deixar-se enlagrimar-se
qual quem a um outro apasce:
se, numa, é ardente a carne,
a outra, comungada, arde.
De riso e dedos nos lábios,
num ocultamento inábil,
ela finge-se à janela.
E sua face, contra a tela,
não esconde seu desgosto
de sentir, de encontro ao rosto,
um queimor tamanho e tanto
que lhe causa o claro espanto
de ser doutros o calor
que o entorno teima em pôr
em contraste com sua casa,
cujos ares, gelo em brasa,
são a morte e são a vida,
que hoje é apenas lida
nesse livro de história
que é sua triste memória.
Abre, olha, lambe a folha,
querendo que ela não tolha,
ao sentir o travo amargo,
o seu sentimento vago
de que possa em algum dia,
mesmo que coisa tardia,
sentir nova a velha história
que não lhe deixa a memória.
Mira o quarto — e, nas costas,
sente soprar, por resposta,
o calor por trás da tela.
A mulher (são treze filhos)
sai da maternidade. Leva consigo os novos
(são três que agora carrega). No quarto
(que umidade nos cantos), beija os tenros
rebentos, dizendo a seus ouvidos: Meu Deus,
muito obrigado!
Argh, que coisa horrível! — diz a acadêmica,
lendo o seu matutino. Anda muito absorta,
puxando numa das mãos a sua única-filha
(laqueara as trompas em um distante dezembro),
metida em um uniforme (de pedras, flores, strass). Na outra mão,
orgulhosa, carrega o calhamaço de importantíssima tese
que hoje defenderá. Causa de ficar gravada
pra sempre nos altos anais.
A coisa, amorfa,
entreabriu os olhos,
soprou as cabeças,
beijou-lhes as faces.
Seus lábios, enormes,
são grandes e verdes.
A língua é roxa.
Beijou-lhes as faces,
tocou-lhes os olhos,
baixando as pálpebras.
A boca, infeita,
cantou um seu canto,
e surdos tambores
bailaram nos ares,
os corpos tomaram.
E enquanto bailavam,
bailavam, bailavam,
os corpos sorriam,
os corpos cantavam,
os corpos dormiam,
cedendo ao seu canto,
ingênuos, insanos,
também desatentos
aos grandes cavalos
por trás da figura:
uns cachos horrendos,
nodosos e roxos,
caindo dos lábios.
O índio diz a missa,
distribui o Corpo, fala d’Ele
em indigenês. É inversa a Babel.
A Torre-Vera não foi erigida:
desceu até nós. Distribui-se o Mistério
(um só) em todas as línguas.
É a hora do sinistro —
todas são as suas horas.
Abres a porta e o convidas.
E suas asas te cobrem,
envolvendo-te. Te apavoras?
Ó célebre, histórico.
Alargas os braços qual sedutor porto —
convidas-me imenso.
As vestes se me colam ao corpo;
eis que me tens, tu alto, denso.
Um forte lamento ecoa ao norte;
não sei que monstro de teu arsenal rasgou-me a noite.
Cavalo-marinho passeia a meu largo;
seu dorso é negro, é sinistro. É morte.
Vai em ritmo lento
meu triste corcel. Seu corpo é mudo,
seu canto é surdo.
As vestes diluem-se, calmas.
Os olhos perscrutam uns vazios.
Quem és tu que me chamas, Terrível?
Desfaz o horror. Aquece meus frios.
Gozoso presente vário,
num instigar-me diário,
foi o que me prometeu...
Então, situado no tempo,
eu balouçando ao vento,
o prometido ocorreu:
rúbido, rubro, rubente
ramo de flores, silente,
o sedutor a mim deu;
deu-me fechando-me os olhos,
cessando os sidos sonoros,
lançando-me em denso breu.
E foi um maço de cardos
que recebi, abraçado,
apertado ao peito meu.
São aves imundas
de imenso negror.
Passeiam aos pares,
centenas, milhares —
miríades de miríades de miríades de aves.
Passeiam em rondas,
agouros, caixões —
um ruflar de asas,
funestos sermões.
São pêlos, não plumas, que orlam, adornam os corpos tufões.
São setas girando,
são dardos gritando,
são bicos sorrindo,
são olhos luzindo.
Os bicos, os bicos — beijam, cortam estes lábios famintos.
Levantam-se aos ares,
abrindo suas fendas.
Recebo suas fezes
em minha garganta.
Corpo após outro visita-me a fenda, me abre, me encanta.
Insone torpor
recolhe meus pés,
me toma lilás,
partindo do ventre.
Raro gemido me toma o corpo, e rio descontente.
Eu rosno, eu grito,
eu abro as asas.
Eu salto e não vôo,
as asas pesadas.
As aves, as aves — onde? As aves. Empurram-me à larga.
Um ventre? Que ventre?
Empurram por dentro,
soltando-se em estalos.
Eu grito, eu calo.
As asas das aves volteiam vermelhas, roxas. Acres.
Os céus são de chumbo.
Os céus são de carne.
Os céus são qual filhos
nascidos em aves.
Meus filhos, meus filhos, são látegos, são bicos. E ardem!
Em nuvem se voltam
à minha pessoa,
me jogam as fezes,
os filhos, as aves.
E eu lambo, e eu como — diluindo-me em intimidades.