Presença
Não é rumor de correntes
o som que aqui se pressente;
são as sandálias puídas
nos pés da mulher-antiga.
Desce escada, sobe escada,
na porta a face espalmada.
Que queres, que ouves sozinha,
só tu e tua porfia?
Que queres tu murmurante,
sendo de ti adiante
apenas véu e cortina,
a um tempo tão dura e fina?
Segue na diária trilha,
só, a mulher-andarilha.
Quem vê, quem sabe da falta
que há no peito da nauta?
Nauta de veste andrajosa,
andeja. Flor tão formosa
decora a bela fazenda,
de laços, bicos e rendas.
A flor, no pano, é vária,
estampa e também alfaia,
lembrando que o pano roto
não fora um dia assim morto
como ela o é tão agora.
Essa, na casa onde mora,
passa as unhas na parede
tentando aplacar a sede
que lhe provoca a memória,
como se a sua história
fosse possível ser lida
ou, quem sabe, revivida
num mero passar de dedos,
revolvedor de segredos,
nessa leitura em braile
que contra um muro se esvai.
No bolso as mãos enfurnadas,
vaga a mulher-enjaulada,
no corredor, tão sombrio
que tem uns laivos de frio
correndo por trás dos quadros
— como se, tão desmaiados,
dos rostos fosse o desvelo,
nesse túnel quase gelo,
o deixar-se enlagrimar-se
qual quem a um outro apasce:
se, numa, é ardente a carne,
a outra, comungada, arde.
De riso e dedos nos lábios,
num ocultamento inábil,
ela finge-se à janela.
E sua face, contra a tela,
não esconde seu desgosto
de sentir, de encontro ao rosto,
um queimor tamanho e tanto
que lhe causa o claro espanto
de ser doutros o calor
que o entorno teima em pôr
em contraste com sua casa,
cujos ares, gelo em brasa,
são a morte e são a vida,
que hoje é apenas lida
nesse livro de história
que é sua triste memória.
Abre, olha, lambe a folha,
querendo que ela não tolha,
ao sentir o travo amargo,
o seu sentimento vago
de que possa em algum dia,
mesmo que coisa tardia,
sentir nova a velha história
que não lhe deixa a memória.
Mira o quarto — e, nas costas,
sente soprar, por resposta,
o calor por trás da tela.
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